D. VITAL E A QUESTÃO RELIGIOSA NO BRASIL  

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                                                          HORÁCIO DE ALMEIDA

(*) Conferência lida em sessão da CEPHAS em 1979

Confira o artigo original aqui. Publicado na revista do REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO.


O livro de Antônio Manuel dos reis, intitulado O Bispo de Olinda perante a História, ocupa o primeiro lugar, na ordem cronológica, entre os que escreveram sobre D. Vital. Foi publicado em 1878, exatamente no ano em que morreu o bispo. Tanto a publicação do livro como a morte de D. Vital comemoram este ano o seu primeiro centenário.

Logo de entrada, afirma o autor que D. Vital era pernambucano, nascido em Pedras de Fogo, Ora, Pedras de Fogo é e sempre foi município da Paraíba, anexo ao de Itambé, em Pernambuco. Ali nasceu o bispo, a 27 de novembro de 1844.

Todos os autores que escreveram sobre F. Vital, a partir de Antônio Manuel dos Reis, inclusive alguns pernambucanos, repetiram o erro histórico de que o bispo de Olinda era natural de Pernambuco. A verdade, porém, é que nasceu na Paraíba, no sítio Jaqueira, do Engenho Aurora, município de Pedras de Fogo.

Nenhuma dúvida existe a tal respeito. Já vinha morta esta questão desde 1897, quando o pai de F. Vital, capitão Antônio Gonçalves de Oliveira, em resposta a uma carta de Francisco Freire de Andrade, afirmou que seu filho nasceu no sítio Jaqueira, em Pedras de Fogo, meia légua da linha divisória com Pernambuco. A carta foi publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, v. 10, p.55.

D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, antes de entrar para o claustro, chamava-se Antônio Gonçalves de Oliveira Júnior. Com este nome estudo no Colégio Benfica, do Recife, e ingressou depois no Seminário de Olinda. Feito o curso de teologia, embarcou para a Europa, onde concluiu os seus estudos no Seminário de S. Sulpício. A seguir, mudou de nome ao toma o hábito de capuchinho no convento de Versalhes.

Regressando ao Brasil, foi para São Paulo, em cujo Seminário lecionou filosofia.
Tinha 27 anos de idade quando foi nomeado bispo de Olinda por decreto imperial de 21 de maio de 1871. A 24 de maio do ano seguinte investiu-se no exercício de sua função episcopal.

Já nesse tempo uns pruridos de luta punham guarda a igreja e a maçonaria. As lojas maçônicas fundam jornais no Brasil, o que antes nunca tiveram. Circula no Rio de Janeiro A Familia, no Recife, A Verdade, no Pará, O Pelicano. A impressa maçônica entra a fustigar o clero com acerbas críticas aos dogmas da igreja.

Até 1870 reinava paz entre a igreja e a maçonaria. Nenhuma incompatibilidade havia entre os dois credos, porque um era de fé religiosa, o outro de fé civil. Contava o clero brasileiro inúmero maçons dentre os mais ilustre da padraria. Esse entendimento vinha desde os pródromos da Independência e continuou sem quebra pelos tempos afora.

Sabe-se que a maçonaria brotou em Pernambuco, quando o naturalista Manuel Arruda da Câmara fundou o Areópago de Itambé, em 1798. Pouco depois, o bispo Azeredo Coutinho criava o Seminário de Olinda (1800), considerado o maior ninho de maçonaria do Brasil, sem o qual não surgiria a geração idealista que fez a revolução de 1817, na afirmação de Capistrano de Abreu.

Sempre de mãos dadas, padres e maçons estiveram presentes a todos os pronunciamentos patrióticos do Brasil. Mas o Concílio do Vaticano de 1870, provocou a separação. O Concílio instituiu o dogma da infalibilidade papal, contra o qual se levantou a maçonaria da França e da Itália.

Dentro da própria igreja houve reação ao dogma, com luta aberta entre liberais e ultramontanos. Batia-se corrente liberalista por uma tolerância religiosa capaz de conciliar, no campo da moral, o prestígio da igreja com o seu passado de lutas, enquanto os ultramontanos impunham a autoridade papal como preceito de fé. Por trás dos públicos debates agia a maçonaria, que agitava os cordéis entre liberalismo e ultramontanismo.

A luta, como se vê, veio de fora para dentro, como produto de importação. Começou em Roma e acabou no Brasil.

No ano seguinte ao do Concílio foi D. Vital nomeado bispo de Olinda por decreto imperial, referendado pelo Consistório Romano. Tomou posse de sua prelazia em maio de 1872.

Moço, temperamento voluntarioso, ultramontano, não era homem para contemporizar com liberalistas, menos ainda para dobrar diante de ameaças. Muitos maçons faziam parte das irmandades religiosas, todos católicos praticantes, gente do melhor padrão social da capital pernambucana. Mas essa dupla qualidade não era de público conhecia.

Deu-se que o jornal A Verdade, em seu estilo de provocação, abriu campanha de ridículo contra os dogmas da igreja, entre os quais o da Santíssima Trindade, o das penas eternas e sobretudo o da infabilidade papal. Passou a reivindicar, como conquistas do século, a separação da Igreja e do Estado, a secularização dos cemitérios e a instituição do casamento civil, postulados que a República adotou. Por fim, publicou acintosamente a relação dos maçons que faziam parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Santo Antônio do Recife.

O bispo não pode suportar tamanha afronta. Alçou o brado de indignação contra os maçons. Proibiu que se rezassem missas por alma dos que pertencessem a essa seita maldita. Suspendeu de ordem os padres que não abjuraram a referida seita. Foi além e exigiu da Irmandade do SS. Sacramento a expulsão dos maçons, pois via nessa comunidade os inimigos negregados da igreja.

Desobedecido quanto à expulsão, interditou a Irmandade. O clima no Recife era de tensão, de distúrbio espiritual, e dentro daquela efervescência a figura do bispo se agigantava como a de um autêntico ultramontano.

A Irmandade inconformada recorreu do interdito para o imperador, sendo o recurso levado, como de praxe, à consideração do Conselho de Estado, sendo 1º ministro visconde do Rio Branco, grão-mestre da maçonaria. Tomando conhecimento do recurso, o Conselho deu-lhe da competência do poder temporal e não do espiritual. Em consequência, mandou levantar o interdito.

D. Vital não se temeu de enfrentar o poder. Ao aviso do ministro do Império, João Alfredo, que o intimava a levantar o interdito ofereceu defesa, não qual sustentava o seu ato. A pena de que lançara mão era canônica, assim entendia, e ao aplica-la considerava-se no legítimo exercício de suas funções episcopais. Deixava, portanto, de acatar o veredito.

Denunciado por desobediência perante o Supremo Tribunal da Justiça, foi pronunciado a 12 de dezembro de 1873 e 2 de janeiro do ano seguinte era preso no palácio episcopal e recolhido ao Arsenal da Marinha, de onde foi conduzido ao Rio de Janeiro.

A partir desse momento o bispo se transfigura. Comparece perante o Tribunal, mas não se defende, não reponde a interrogatório, não mais a sua religião. Por isso silenciou, como Jesus perante o príncipe dos sacerdotes. Jesu autem tacebat. Conserva, entretanto, perante todos uma atitude de alheamento, de serena superioridade, indiferente ao resultado daquele julgamento.

Dois advogados se ofereceram para defende-lo: Zacarias de Góis e Cândido Mendes de Almeida, que o Tribunal aceitou, porque ninguém pode ser julgado sem defesa.

Magistral por sua eloquência e fundamentação foi a defesa produzida pelos advogados. Zacarias de Góis examina a fundo os limites de competência entre o espiritual e o temporal, num regime em que a igreja está ligada ao Estado. Mostra que a pena aplicada pelo bispo era canônica e como canônica devia ser reconhecida. Toda a sua defesa gira em torno da preliminar de incompetência da justiça civil para conhecer do ato que interditou a Irmandade. Por igual é a defesa de Cândido Mentes tão profunda quanto brilhante.

Mas o Supremo desprezou a preliminar para conhecer o mérito da questão. Fundou-se em que todo regulamento de irmandade religiosa na época, só tinha força de leis depois de submetido pela igreja à aprovação do legislativo provincial. Logo, a competência para o interdito tinha que ser do temporal e não do espiritual.

Isso posto, condenou D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, bispo de Olinda, a quatro anos de prisão com trabalho e custas, pena que o imperador comutou em prisão simples. Deu-se a condenação a 21 de fevereiro de 1874.

Por idêntico motivo foi também preso, julgado e condenado à prisão. D. Antônio de Macedo Costa, bispo do Pará, tão valoroso na defesa de suas prerrogativas episcopais como o seu colega de Olinda, ambos exímios em teologia, ultramontanos e não sem motivo inimigos viscerais das sociedades secretas.

Enfim, o Estado levou a melhor na parada contra os bispos insubmissos, mas o trono ficou abalado porque era grande era a influência da religião no espírito do povo. A maçonaria, como sociedade secreta, não tinha nenhuma influência sobre o povo. Podia ter para os órgãos de cúpula, não para o povo.

***

Não acabou no cárcere a questão religiosa suscitada no Brasil pela prisão e condenação de dois bispos. O fanatismo religioso, esquecido do perdão, continuou propinando o veneno da revolta principalmente na Paraíba de onde era natural o bispo de Olinda.

Alguns padres se inflamaram de zelo apostólico, procurando converter o antistite em mártir de um governo herético. O mais exaltado de todos foi o padre Calisto da Nóbrega, vigário de Campina Grande. No início da lita, quando D. Vital ainda estava em liberdade, foi ao Recife para visita-lo. De volta, tão irado vinha, que expulsou da igreja os maçons, como excomungados. Por cima, insuflava o povo contra os amaldiçoados.

Os poucos maçons que havia em Campina Grande, membros da loja “Segredo e Liberdade”, receavam sair à rua, temendo represálias do povo fanatizado.

Depois da prisão de D. Vital, o vigário Calisto mais revoltado ficou. Convidou o padre mestre Ibiapina para abrir missões em sua paróquia. Ibiapina, um missionário quase santo, devotado exclusivamente ao amor do próximo, contamina-se de paixão que o clero fomenta. Eis que, em suas prédicas, aconselha os devotos a não pagarem imposto a um governo herético, que tem contra si o anátema da Santa Sé. Arrependido desse excesso de linguagem, voltou ao exercício de sua missão apostolar, a pregar o bem, a construir as suas casas de caridade.

Por todo o ano de 1874 fomenta-se a rebeldia. Em novembro, rebenta na Paraíba um movimento sedicioso que tomou o nome de Quebra-Quilos. Não há que procurar nos tratados de história do Brasil notícia desse acontecimento histórico. A razão parece óbvia. Somente seis unidades federativas da maior importância fornecem matéria factual para a história do Brasil e são elas – Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. As outras não passam de vagões vazios na visão dos nossos preclaros historiadores.

No dia 21 de novembro, sábado, dia de feira, deflagra-se a mazorva. Bandos armados ocupam nesse dia as cidades de Campina Grande, Cabaceiras, São João do Cariri, Ingá, Pilar, Guarabira, Alagoa Grande, Alagoa Nova, Areia, Bananeiras e mais outros lugares.

O que se faz em uma localidade repete-se na outra, tudo no mesmo dia, tudo no mesmo estilo. Cada grupo de cem a duzentos homens tem o seu chefe, mas ninguém sabe quem é o cabeça principal do movimento.

Homens rústicos, camponeses, armados de clavinote, foice e facão, formam os diferentes grupos que tomam de assalto as localidades. Vão direto à cadeia, que também é quartel, desarmam e prendem os soldados desavisados, soltam os presos e a partir daí tomam conta do lugar. Queimam os arquivos municipais, rasgam os processos dos cartórios, destroem os pesos e medidas dos estabelecimentos comerciais, mas não invadem domicílios, não roubam nada de ninguém, respeitam a população indefesa, sobretudo as famílias. A multidão que enche a feira, como não é molestada, olha com simpatia para o movimento sedicioso. Por onde passam os sediciosos indagam da existência de maçons, clamam contra o governo de bacharéis e já falam em governo do povo.

Em Areia, principal cidade do interior, derrubam da parede da Câmara Municipal um retrato de Dom Pedro II, que é pisoteado e dilacerado. No entender dos mazorqueiros, foi ele quem mandou prender os dois bispos e metê-los na cadeia.

A sedição se alastra pelo brejo e pelas caatingas, menos pelo sertão, enquanto o governo provincial se mostra impotente para sufoca-la. Solicita ajuda do governo imperial, antes que penetre em Pernambuco e Rio Grande do Norte.

De pronto, o governo imperial envia à Paraíba uma força de linha, composta do 14º Batalhão de Infantaria e mais uma ala do 17º, no total de 750 soldados e 47 oficiais. Por comandante dessa tropa vai o coronel Severiano da Fonseca, depois general.

Já estava amortecido o movimento sedicioso, quase acabado, como se cumprida estivesse a sua missão, quando chegou à Paraíba a força de linha, em fins de 1874.

Uma parte da tropa do coronel Severiano acampou nas localidades do interior, a outra ficou com ele aquartelada na capital. A força do interior, a pretexto de implantar a ordem, desmandou-se em violências. Efetuava prisões em massa e quando não encontrava o suposto culpado prendia o pai ou filho que submetia a castigos imoderados a fim de descobrir o paradeiro do fugitivo. A violação do lar, a qualquer hora do dia ou da noite, era fato rotineiro, com sério perigos para a honra das donzelas.
Em Areia, o capitão Longuinho não deixou boa fama, da mesma forma que o capitão Piragibe em Campina Grande. Entre os instrumentos de suplício inaugurou-se o desumano colete de couro, novidade celebríssima trazida das planícies meridionais, onde se desenrolara a guerra do Paraguai. Cosia-se o couro, depois de molhado, ao tronco do indivíduo, como se fosse um colete bem apertado. Ao secar, dava-se a contração da couraça e era tal a compressão sobre o tórax do paciente que o sangue lhe jorrava pela boca. Os que sobreviveram a esse suplício não escaparam das lesões cardíacas ou pulmonares.

Enquanto o exército restabelecia a ordem, o chefe de polícia, Caldas Barreto, percorria as cidades do interior por onde passaram os sediciosos, a fim de apurar a culpa dos cabecilhas. Vários processos foram abertos e apontadas quatro causas para o levante das massas.

A)    Aumento de impostos
B)     Adoção do sistema métrico decimal
C)     Alistamento militar
D)    Fanatismo religioso

A  primeira das causas não passa de cortina de fumaça arquitetada pelos implicados para tumultuar o processo. Em verdade, nenhum aumento de imposto fora decretado. O que a lei orçamentária da Província criou, convém que se diga, só entraria em vigor no ano seguinte. O povo ignorava essa lei que ainda estava em elaboração na Assembleia Legislativa. Não é crível que produzisse efeito assim antecipado. A lei apontada como causa só ia vigorar em 1875 e a sedição estourou em novembro de 1874. No entanto, escritores mal informados ou de ideias preconcebidas, que distorcem toda verdade histórica para enquadrar os fatos na raia do fator econômico, conforme é moda entre os devotos da intepretação marxista, também chamada interpretação materialista da história, insistem em dizer que a sedição do Quebra-Quilos teve por causa única o aumento dos impostos, coisa que estava ainda por acontecer. Inscreve-se no número desses intérpretes o escritor Armando Souto Maior com o seu livro Quebra-Quilos, publicado recentemente pela Brasiliana.

A segunda causa também não procede. Funda-se na adoção do sistema métrico decimal. Ora, esse sistema, adotado na França em 1870 e no Brasil em 1872, só benefícios trazia ao povo, porquanto substituía as antigas medidas de comprimento, até então postas em vigor, tais, como a vara, a braça, o côvado, o palmo, a polegada, a légua, pelo metro, medida padronizada, seus múltiplos e fracos. Também substituía a cuia, o litro, a libra, a arroba de pedra, medidas de capacidade, pelo quilo de ferro. A raiva contra a medida nova provinha do fato de ter sito decretada por um governo herético, já fulminado pelo anátema do santo papa, conforme apregoava o clero.

O alistamento militar só posteriormente foi posto em execução. Além do mais, a lei que estabelecia normas para corrigir o abuso do recrutamento, processo vexatório que recaía de preferência sobre as camadas mais baixas da população, jamais daria motivo para a sediação do Quebra-Quilos. Trata-se, como se vê, de outra balela destinada a obscurecer a verdadeira causa do levante.

Vejamos agora o último motivo apontado, o fanatismo religioso. Aí está o nervo da questão. A luta entre a igreja e o Estado ia alta, desde a prisão de D. Vital, quando rebentou na Paraíba a sedição do Quebra-Quilos. O padre Calisto da Nóbrega, vigário de Campina Grande, atuava como mento da desordem, mas não estava só. Agia ao lado o Dr. Ireneu Jóffily, juiz municipal de Campina Grande. Apenas malogrou o movimento, Irineu Jóffily demitiu-se do cargo e abriu banca de advogado para defender o padre Calisto e demais implicados no processo aberto naquela comarca.

Em seu relatório ao presidente da Província o chefe de polícia Caldas Barreto estranhou a atitude do Juiz municipal largando o posto, exatamente na hora de apurar a responsabilidade dos implicados. Frisa mais, que eram intimas as relações de amizade entre o padre Calisto e Irineu Jóffily.
Anos depois, Irineu Jóffily se consagra estudioso dos problemas históricos e geográficos da Paraíba. Publicou o livro Notas sobre a Paraíba, Rio de Janeiro, 1892, prefaciado por Capistrano de Abreu. Nesse livro, página 187, assim se expressa sobre a sedição:

“Podemos assegurar, como testemunha de vista, que não é verdadeira a opinião dos que dizem ter sido a sedição Quebra-Quilo promovida pelo clero paraibano e principalmente pelo missionário padre Ibiapina. A causa foi a decretação de novos impostos pela Assembleia Provincial da Paraíba  em sua sessão desse ano. A notícia chegou a essa população pobre e ignorante de tal modo aumentada e extravagante, que despertou logo um ódio geral contra o governo de homens rústicos como eles. Neste estado de exaltação de espírito estava o povo quando põe-se em execução a lei que estabelecia o sistema métrico decimal, cuja vantagem não podendo por ele ser compreendida, fez explodir a mina já preparada. Os novos pesos para esse povo simbolizavam o aumento dos impostos, a tirania do governo e por isso fez convergir para eles o seu ódio. Deste fato, pois, proveio o nome de Quebra-Quilos, dado aos sediciosos, os quais o maior mal que causaram foi a destruição de documentos preciosos com a incineração de muitos arquivos públicos. ”

Não somente Irineu Jóffily testemunhou os fatos como participou deles, na qualidade de mentor, justamente como o padre Calisto. Há suspeitas bem fundadas contra ele. O chefe de polícia, Caldas Barreto, aponta-o como um dos inspiradores do movimento sedicioso, Irineu Jóffily tenta justifica-lo com a atoarda do aumento de impostos. E como lhe parecesse fraca essa razão, junto a ela, como reforço, a do sistema métrico decimal, que fez explodir a mina, apesar de ser essa medida a favor do povo.
O então presidente da Provincia, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, depois barão do Abiai, em relatório apresentado à Assembleia Legislativa, a 9-10-1875, pulveriza todas as causas invocadas como pretexto para o levante do Quebra-Quilos. Afina, declara:

“Apenas o fanatismo de alguns párocos preparou o espírito inculto da população para os lamentáveis e deponentes movimentos sediciosos.


Os pregoeiros da tese de que a rebeldia do Quebra-Quilos teve por causa o aumento de impostos, continuam repetindo Irineu Jóffily, que teve lá a sua razão para lavar a testada com a versão que deu à sedição. Eximia-se por esta forma do comprometimento que teve no caso. Repeti-lo já agora, é deslizar conscientemente sobre a verdade histórica.

Bento XVI, Chesterton e Fulton Sheen - Os gigantes se conhecem  

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Nosso grande Bento XVI conheceu dom Fulton Sheen por ocasião do CVII (1962-1965). O próprio Papa quem diz isso: "Fulton Sheen [...] nos fascinava com os seus discursos". o Papa disse isso em um discurso pronunciado por ocasião da sua visita à casa dos Verbitas em Nemim. Confira site do Vaticano.

Dom Fulton Sheen era, também, grande amigo de Gilbert Keith Chesterton. Os dois se conheceram e trocaram cartas. Chesterton inclusive escreveu a introdução ao livro “Deus e a Inteligência na Filosofia Moderna”. Confira no site da Sociedade Chesterton Brasil.

Chesterton e o seu livro sobre S. Francisco de Assis  

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Por Olívio Montenegro, Recife, 1930 
Publicado na revista A Ordem de 1955 

Fixar fortemente as realidades dignas de serem compreendidas, é faculdade em Chesterton de mais relevo. E esta faculdade é uma das raras, por isso mesmo que é uma das mais simples, das que sofrem menos o contato da imaginação e o contato das ideias puras. Mas muita gente que admira Chesterton, eu noto que admira dentro desse ar meio divertido, meio cético, que em geral tomam as pessoas grandes quando estão diante de crianças de espírito. E em que acham muita graça, mas que não julgam tomá-las a sério. Porque Chesterton ainda é um puro paradoxal para muita gente. Um diletante. 

Entretanto um escritor seríssimo. O menos paradoxal dos escritores. Destes que repelem por instinto tudo o que não cheira à realidade e à vida. Tudo o que é convenção e artifício entre os homens. O único paradoxo que à conta de Chesterton eu descubro é ver quanto ele é um autor pouco popular justamente pela única qualidade que o devia fazer o mais lido dos autores – o senso comum. E o seu difere muito do bom senso. O bom senso como um saber ver praticamente, com oportunidade, com oportunidade e razão. 

E o senso comum como um saber ver realmente, com veracidade e intuição. Mas é que, em verdade, o senso comum não populariza ninguém por isso mesmo que ele é o mais estranho do que parece à nossa vida ordinária. E outra coisa não nos insinua Chesterton em seu livro sobre S. Francisco de Assis, quando diz que a vida ordinária é mais cheia de imaginação do que a vida contemplativa. Mais artificial e menos pura. 

A cada passo a imaginação está a substituir e a obscurecer no homem comum os melhores trechos da vida. Poderíamos dizer: os mais arquitetônicos, os de contorno mais plásticos e incisivo. Daí a impressão sem unidade e sem sentido que a vida deixa a muita gente. As suas largas sombras de mistério. Este constante e desesperado esforço na ponta dos pés para ver através de obstáculos que tampam a vista. 

É preciso uma candura quase como a das crianças para ver com simplicidade, e justo. Agora quando a essa candura da primeira idade vem se juntar o senso crítico do homem feito, então apanhar-se todo o sentido de realidade que tem a obra de um escritor como Chesterton. Sentido de realidade e não paradoxo. E compreende-se que sejam os contos de fada os que mais interessem e o deleitem e o convençam. “they seem to me to be the entirely reasonable thing. They are not fantasies: compared with them other things are phantastic. Fairyland is nothing, but the sunny country of common sense”. É uma citação do seu livro de polêmica “Orthodoxy”. Ao mesmo tempo livro de forte exegese, de aguda, extraordinária interpretação religiosa. E que um sopro de vida introspectiva acende, numa página e noutra, um interesse dramático. Aliás , uma vez bem fixado, não há escritor que dê mais ao vivo o sentimento do pitoresco do que Chesterton. Um pitoresco que Gilberto Freyre me definiu uma vez a “preto e branco”. Deixo aos íntimos de leituras de Chesterton que avaliem o fino e forte dessa definição. 

Mas foi para falar do livro sobre S. Francisco de Assis que comecei a escrever sobre Chesterton. Desta biografia sobre S. Francisco de Assis, e que não tem nenhum sinal de parentesco com outros estudos de biografia como eles são feitos todos os dias. Uma biografia que não é simplesmente a vida exterior de um santo! O seu retrato. E em geral as biografias são unicamente um retrato. Uma imagem que ensombra, empalidece, dissipa todas as outras imagens da vida. Por isto o ar de fantástico, inverossímel de quase todas essas biografias. Não nos dão o invisível, e o que se agita de todos os lados em torno de uma vida. É uma vida como a dos teatros que elas nos dão; artificialmente cerrada entre os decoros da cena. 

O trabalho de Chesterton constitui porém quase que uma inovação nesta matéria. Ele disse que para descrever um homem era preciso muitas vezes descrever um mundo. E não foi que para nos dar a vida de S. Francisco, ele nos retratou quase toda a idade média, a idade média desde o período do Troubadours, desde o IX século até as cruzadas? Deu-nos toda época heróica da idade média. E na história da vida de S. Francisco de Assis, este estudo da idade média, não entra como uma decoração, como um fundo de quadro, mas como um elemento de vida, como uma ambiente, o único ambiente em que se podia refletir a alma deste santo. Este santo de que tínhamos muito retratos, mas não o retrato de sua vida interior. Tinhamos a sua fisionomia, mas não tínhamos a sua alma. Tínhamos seu corpo macerado e nu, o céu cilício e a sua barba afilada, tínhamos o seu ascetismo implacável, a miséria enfim, do seu corpo. Da robustez e da saúde da sua alma tínhamos muito pouco, ou quase nada. Do que havia de saúde e de fortemente jovial, e sonoramente alegre, e poeticamente heróico; do que havia de claro e ardente na alma deste santo ninguém nos deu mais ao vivo do que Gilbert K. Chesterton. 

Nas biografias de S. Francisco de Assis, como nas de todos os santos, é comum passar-se por cima do homem para se chegar ao santo. Chesterton porém nos dá esta novidade encantadora: de chagar ao santo muito naturalmente pelo homem. É uma biografia que é ao mesmo tempo uma lição cristã. Que é ao mesmo tempo uma aplicação da doutrina do Evangelho. O homem à semelhança de Deus. E mais – ele não diminui o meio para servir o homem. Chesterton coloca S. Franscisco no seu verdadeiro meio, aliás o único quadro da vida em que a individualidade do grande santo podia chegar à sua maior plenitude de força e de beleza moral. A sua visão psicológica do homem tem a mesma penetração que a sua visão histórica do meio. A mesma força e a mesma precisão. S. Francisco ganha como significação de símbolo. O símbolo da idade média. Esta idade média de que Chesterton nos oferece a mais viva e a mais duradoura imagem que é possível se oferecer de uma época; época que também sofreu e continua a sofrer o martírio e a crucificação por que passaram os seus santos. O martírio e a crucificação dos que vão revistar com olho insensível e profano. Com olho e faro de abutre. A idade média marcou uma das idades mais românticas da história (romântica, não sentimental), mas foi também uma das mais práticas. Este senso de prático da idade média descobriu-o o olhar reto e simples de Chesterton, um senso prático que não tem nenhuma relação com o senso egoísta e desumano da vida moderna. Um senso prático que era ao mesmo tempo um senso de fraternidade e de comunhão humana. 

E de que as corporações, corporações de toda a espécie e ligadas a toda a atividade são o seu tipo mais aperfeiçoado. Senso prático que não repelia mas colaborava com o sentido heróico da vida. O seu sentido espiritual. Esta fazer da vida medieval o homem moderno não a descobre facilmente. Ou melhor, não a apanha do primeiro golpe. Esta comovida agitação diante da vida. O poder de estar na vida como numa aventura. 

A vida para o homem do nosso século é apenas uma luta (struggle for life). Na idade média (séculos XII e XIII) a vida porém foi sempre alguma coisa mais de que uma luta; do que a luta pela luta, a força pela força, do espírito moderno. Foi antes uma conquista, que é o drama na luta. E não é uma relação que sente mais voluptosamente, e mais fundo: uma relação de amor, poderíamos dizer. E é este traço da idade média que não poderia passar fora do golpe de raio da visão de Chesterton – este sentimento poético da vida que nos séculos XII e XIII, se conserva com uma força inesgotável através de toda a luz branca do seu misticismo. 

Aliás, toda a inquietação espiritual de que se ressentem o pensamento e a ação do homem medieval, nesse amor à vida é onde tem a sua principal raiz. No sempre esperto e aguçado desejo de fraternização e intimidade com os seres e as coisas do Universo. 

A arte dos “troubadours” tão cheia de febre, e tão cheia de luz, tão intensa e tão transparente ao mesmo tempo, é a imagem mais concentrada desse sentimento amorosos do homem em face das coisas da terra, do seu interesse a um tempo positivo e lírico, sensual e cristão por todas as formas de Natureza. S. Francisco de Assis tinha como ninguém uma alma de “troubadour”. Em S. Francisco de Assis tinha como nenhum homem este impulso cordial pela vida da Natureza e seu colorido, a sua força, o imperscrutável mistério das suas criações, assumiu um relevo mais dramático. A grande poesia de S. Francisco não está tanto nos seus versos, nos seus cantos ao Sol, está na sua vida mesmo, na sua ação, e nas suas obras. A harmonia, a grande harmonia que havia de dominar a sensibilidade desse santo, não foi naturalmente a harmonia da idéia, e antes a harmonia do Universo. A vida para ele tinha um ritmo maior do que todos os outros ritmos que podem nascer do sentimento ou da idéia. Para S. Francisco de Assis a vida na terra nunca lhe soube a aprovação. Nada de provação a vida para o grande asceta, o grande esfaimado de jejuns; esse voluptuoso de penitências e de martírio. Apenas uma lição. Apenas uma lição de profundas e íntimas experiências, é o que ela foi cá para o bom S. Francisco de Assis. Ou mais simplesmente – um campo de constantes e venturosas descobertas. 

Não pode nada haver que no homem concentre mais sensação de vida, e interiormente nos intensifique e desenvolva mais do que uma descoberta. É como um novo sentido que nascesse em nós. Pois S. Francisco, e é Chesterton ele mesmo quem no-lo revela, era justamente este homem para quem não havia o mistério puro. O mistério sumia-se diante dos olhos do seu espírito como a treva com a luz. 

Não se cita na história exemplo de uma visão arquitetural da vida, mais permanente, nem mais lúcida e instantânea. 

Uma visão a ferir sempre os efeitos gerais que não são os efeitos em massa de uma floresta, mas são os efeitos em articulação, em corpo, de um monumento, de uma catedral. Porque é uma diferença que vale a pena marcar, a diferença entre uma visão em globo, e uma visão integral, das coisas. S. Franscisco possuía justamente essa visão integral, que não sacrifica a parte ao todo, mas que os distingue com uma acuidade infalível. 

O que mais espanta em S. Francisco de Assis, o que mais espanta no retrato a carvão que Chesterton nos dá desse santo, é a inalterável unidade que se percebe entre a sua vida interior e a sua vida exterior. É a esquisita fidelidade do seu gesto ao seu sentimento. A sinceridade absurda das suas atitudes, ou melhor a coerência, a irreprimível lógica da sua ação. O seu amor às vezes, aos bichos, aos elementos como o Sol e Água, tudo irmãos, porque tudo emanado do mesmo Poder e da mesma Vontade, tem uma cor de inteligência sobrenatural. Essa profusão de humanitarismo na vida de S. Francisco de Assis, talvez dentro do prejuízo do espírito moderno viesse a ter uma expansão medíocre. Na idade média, porém, ela produziu a Ordem dos Menores, essa Ordem que, diz Chesterton, “foi da natureza de um tremor de terra ou de uma irrupção vulcânica: explosão que lançou fora com uma energia dinâmica as forças acumuladas desde dez séculos, na fortaleza ou no arsenal do mosteiro, e dispersou todas as suas riquezas em todos os pontos da terra”. 

De S. Francisco de Assis poderia se dizer (se grau houvesse para santidade) que foi o maior santo da idade média, pelo menos num sentido: de que foi quem melhor a exprimiu nos seus ideias de justiça, e na sua ânsia de Deus. 

Assim é que certas ordens da idade média parecem uma criação pura de S. Francisco de Assis, como essa ordem dos Cavaleiros, por exemplo. Essa ordem de homens devotados exclusivamente ao serviço dos fracos e dos humildes, e dos pobres e dos aleijados é todo um poema em ação, em vida. É a maior confluência que se pode imaginar da poesia, na força. A ordem dos cavaleiros a serviço de todos os oprimidos e inválidos, é uma como antecipação em ponto inferior da ordem dos Menores. Há um tão forte de família entre as duas ordens, que ninguém diria nascidas tão distantes uma da outra. O que a ordem dos Cavaleiros procurou fazer pela vida terrestre dos pobres. É lírico tudo isso, mas grande como a vida mesma.

O progresso e Chesterton - Gustavo Corção  

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Por Gustavo Corção,
Publicado na Revista A Ordem, janeiro de 1940.

Léon Bloy fez na "Exegese des lieux communs" a perseguição impiedosa dessas expressões amoedadas que andam por aí, nas ruas e nas cátedras, como restos ensebados duma sabedoria que a preguiça e a conveniência prostituíram. Bloy não escolhia muito, nem perdia muito tempo em olhar mais de perto os frangalhos que impetuosamente desbaratava.

Numa linguagem viva e desesperada, sem medida, sem precauções, ele fazia um chicote estalar em cada frase...

Chesterton não foi menos inimigo do lugar comum, nem menos tenaz, mas especializou-se numa certa espécie, naqueles que contém verdades de pernas para o ar. 
Passou a vida invertendo os quadros que o jornalismo moderno pendura com o Céu para baixo. Fez isso escrupulosamente e corretamente, com a satisfação que um bom inglês deve ter em corrigir as desordens de seu interior.
Foi um D. Quixote gentleman e conseguiu sempre inscrever uma ardorosa combatividade no recato britânico, no horror ao impróprio; mas foi sempre, fundamentalmente, um "redresseur des torts".
Por isso, a cada instante, o leitor comum, habituado às sentenças de Carrel e ao jornalismo moderno, estaca desconfiado na Ortodoxia ou em A Esfera e a Cruz.
Mas um sorriso vagamente divertido resolve a dificuldade daquele leitor que acha afinal uma saída, ainda e sempre por um lugar comum, decretando que aquilo tudo que o Chesterton diz é paradoxo.
Já ouvi essa apreciação em meia dúzia de tentativas que fiz de tornar lido um daqueles livros por diversos amigos, engenheiros, negociantes, dentistas, todos homens de boas roupas e ótimas familias. Dizem que é paradoxo, assim como que diz que certo indivíduo cego de nascença, com escamas nos olhos, ficou vendo de repente, por sugestão.
Dizendo assim uma palavra ávida de definição, sedenta de exegese, parece que o assunto está definitivamente encerrado e que é melhor falar noutra coisa.
Paradoxo tem dois sentidos, muito diferentes.
Pode ser o sinal de crucificação, o emblema da dialética divina que criou as coisas atravessadas pelas coisas, pode ser a vida da inteligência, pode ser todo o cristianismo. Mas para aqueles leitores o paradoxo é um truc de salão, uma escamoteação engraçada, um tirar ovos do nariz, e seguramente pensam que Chesterton escreveu aOrtodoxia "for fun".
Para responder a essa opinião é preciso buscar inspiração no próprio Chesterton e dizer que, naquele sentido, não há um só paradoxo em todos os seus livros, e que o riso da ortodoxia é extremamente sério.
Por isso tudo e principalmente pensando nos leitores católicos, tive a idéia de tentar aqui uma modesta propaganda.
Recomendo o Chesterton como se recomenda o quinino, principalmente para aqueles que por dever de ofício freqüentam os mangues da inteligência, as paragens encharcadas de lugares comuns, as baixadas do pensamento: para aqueles que possam confundir catolicismo com sisudez e cultura com academias.
Quando por exemplo, em roda de intelectuais, um senhor bem vestido dissesse pausadamente que a Igreja tem feito resistência ao Progresso, algum de nós, católico, antigo aluno distinto de apologética, seria capaz de aceitar uma educada controvérsia, tentando improvisar uma advocacia da Igreja, toda ela miudamente construída com fatos e interpretações.
Iria discutir o caso de Galileu, citar Copernico, lembrar que também a revolução se opôs a Lavoisier, e que Einstein foi desterrado pela cruz gamada. Ficaria tudo cristalizado num ambiente acadêmico, tudo impregnado da mais educada idiotia. Seria uma marcação de pontos como no bridge, a saber quem tinha encarcerado mais astrônomos ou queimado mais químicos.
Ora, quem tivesse o Chesterton na mão, como um vidro de sais, poderia simplesmente responder que, pensando bem, a Igreja é a única coisa que realmente tem progredido. A maior parte dos católicos presentes a tal reunião, ficaria assustada, a tal ponto nós os católicos nos educamos no hábito de defender, de justificar, de desculpar a Igreja, e a tal ponto receamos espantar o adversário com palavras cristãs demais.
Parece que numa discussão inteligente é preciso calar o amor ao Pai para não ficar como testemunha suspeita, e por isso às vezes se nos afigura, a nós católicos, preferível adotar um tom mais mundano do que cristão. Já ouvi turbulentas gritarias cosmogônicas em que cada um tem sua idéia para as origens e para as leis, e numa dessas gritarias lembro-me que um transbordante católico, no auge do entusiasmo, tão fácil lhe pareceu atacar o darwinismo que chegou a gritar: — Para isso nem preciso de Deus...
Esses católicos costumam praticar a contabilidade da Verdade.
Julgam meio caminho andado quando os seus oponentes acabam concordando que são a favor de Jesus. Julgam que a Igreja cresce subitamente e o Cristo ressuscita quando se consegue apurar uma safadeza de Rousseau; julgam que é um verdadeiro apostolado contar que Diderot ensinava o pelo-sinal à filha como se toda a Verdade, todo o Cristo, estivesse à espera de Diderot.
Preferem em presença dos adversários e dos indiferentes não cheirar demais a incenso, e, sempre que possível, se colocar no próprio plano fazendo um miúdo inventário de fatos e anedotas a favor dos Papas. Têm satisfação em citar Psichiari, não por ele mesmo, mas especificamente porque Psichiari responde a Renan e assim, numa espécie de intriga em família, desfaz a má impressão da vida desregrada do avô.
Por isso tudo Chesterton aparece um pouco bruscamente perturbando a diplomacia filandrosa que julgam necessária para salvar os restos da Igreja. É como se na mais solene sessão de Júri alguém se lembrasse de se perguntar ao réu se o Juiz era culpado.
Depois do susto vem o alívio, o sorriso e a classificação de paradoxo. E o julgamento do Cristo pelos jornalistas continua para a delícia das galerias...
Será preciso ler algumas páginas da Ortodoxia para mostrar que aquele aparente paradoxo não foi feito com propósito. O autor vinha perseguindo a idéia de progresso, vinha cercando o conceito, invertendo aqui e ali os lugares comuns que são os monumentos da cultura moderna, quando subitamente a apologia da Igreja apareceu, sozinha, explodiu por assim dizer, sem ser preparada, como chave de ouro de soneto.
Prefiro citar aqui algumas passagens mais características:
O Progresso deveria significar que estamos sempre querendo mudar o mundo para adaptar a uma visão definida. Realmente, hoje, significa que estamos mudando constantemente de visão. Deveria significar que conseguimos devagar, mas de modo seguro, a justiça e a piedade entre os homens: significa na verdade que estamos prontos a duvidar se a justiça e a piedade são desejáveis; uma página louca de um sofista prussiano qualquer faz os homens duvidarem.
O Progresso significaria talvez que estamos sempre em marcha para a nova Jerusalém. Significa que é a nova Jerusalém que está em marcha longe de nós. Não modificamos o real para o adaptar ao Ideal, modificamos o Ideal: é mais fácil.
Exemplos vulgares são sempre mais simples. Suponhamos que um homem queira um certo mundo, digamos um mundo azul. Não teria nenhuma razão de se queixar da lentidão ou rapidez da tarefa; poderia se fatigar nessa transformação, poderia se esgotar até que tudo ficasse azul; passaria por aventuras heróicas, nos últimos retoques de azul sobre um tigre. Haveria sonhos feericos de um lugar azul... Mas se ele trabalhasse com afinco, esse reformador cheio de altas idéias deixaria, segundo seu ponto de vista, um mundo melhor e mais azul do que tinha encontrado.
Se cada dia ele pintasse uma folha de erva, avançaria lentamente. Mas se cada dia modificasse sua cor favorita, então não adiantaria absolutamente. Se, depois de ter lido um novo filósofo, ele se pusesse a pintar tudo de amarelo, então o seu trabalho estaria perdido: nada teria a mostrar senão aqui e ali algum tigre azul, lembrança desagradável de sua primitiva maneira [...]
[...] senti mais uma vez que uma coisa estava presente na discussão: como um homem ouve um sino de Igreja dominar o tumulto da rua. Alguma coisa me dizia: — Meu ideal está fixado, ele foi fixado antes da fundação do mundo. Vocês todos podem mudar o lugar para onde querem ir, mas não aquele de onde vieram. Para o ortodoxo deve existir sempre um motivo para revolução, porque no coração dos homens Deus está sempre sob os pés de Satã. No mundo do alto o Inferno se revoltou contra o céu, mas neste mundo o céu se revolta contra o inferno. Para o ortodoxo pode sempre haver uma revolução que é uma restauração. A cada instante podemos fazer para a perfeição um progresso tal que nenhum homem viu, desde Adão."
É muito fácil falar em progresso quando se pensa unicamente, com uma concentração demente, num modelo de escarradeira, fazendo uma momentânea abstração de todo o Universo e toda a história. Vê-se nitidamente um progresso de escarradeiras, mas quando se torna a admitir a presença de tudo, do universo e dos homens, é preciso convir que a escarradeira é insuficiente, é forçoso convir também que, falando em Progresso, subentende-se um mundo ora mais azul ora mais amarelo. É fácil gritar que é paradoxo, mas realmente só pode progredir o que permanece, o que é fiel a si mesmo, o que não se destrói. Só vale a pena usar esse termo, pensar nele, como um equivalente de crescer. E somente em cima de um chão que permanece, que fica, que é desde o princípio et semper et nunc, poder realmente crescer a árvore da Igreja.
E cresce. Cresce em torno d'O que não muda, d'O que era antes de Abraão ser. Cresce na vertical da liturgia e na fronde do apostolado. Está em todos os tempos. Preocupa-se com Marx ou Nietzche nas cartas paternais de Pio XI que previnem os povos contra os excessos de azul ou de amarelo, e guarda na Missa o grito de um soldado romano. Vem de sempre. Já era desde o princípio. Traz todos os profetas e todos os salmos; surge de repente na Incarnação emergindo de um oceano de prefigurações e promessas; absorve tudo na passagem: a palavra do soldado, uma impaciência de Marta. Dá flores prodigiosas de aroma e suco para um vinho que há de correr por todos os séculos. É a árvore do pão e do vinho; o tronco se simplifica; os galhos se simplificam; um se atravessa no outro e o pão e o vinho se prendem na cruz. E a Igreja cresce conosco, apesar de nós, espalha em torno, quando floresce, as auréolas dos eleitos, sofre todos os golpes, todos os doutores, todos os Papas. E cresce, e progride, porque é sempre a mesma.

Graça Aranha e Jackson  

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"Para aquêles que libertaram a arte brasileira e procuraram integrá-la na atualidade nacional, Jackson de Figueiredo é escritor da mais evidente modernidade. Pode a essência do seu pensamento isentar-se do tempo pela base religiosa, em que se consolidou. Êsse pensamento reflete as angústias, as inquietações do nosso instante e exprime altivamente uma doutrina da salvação. O nosso momento é de afirmações. Todos se livram do ceticismo para proclamar uma libertação dogmática. Jackson de Figueiredo foi dêstes  afirmativos modernos. Combateu o romantismo literário e político. Tomou resolutamente posição no partido da ordem, da hierarquia e da religião católica, como outros afirmativos tomaram posição no partido da ditadura proletária e da negação religiosa. São afirmações vivas, ardentes, do homem de hoje, farto da dúvida e do sorriso renaniano. Para êsse combate, Jackson de Figueiredo armou-se de uma expressão simples, enérgica, despojada de literatura. Dentro desta forma, desta armadura, caracteristicamente moderna, ajustou-se um espírito desassombrado, magnífico de abnegação e sinceridade até o sacrifício. Foi um exemplo edificante de fé, de valor transcendente e por isso gerado de entusiamos. As esforçadas batalhas, em que se empenhou, não lhe esgotaram a perene frescura espiritual. Como os grandes combatentes da sua classe, Jackson de Figueiredo possuía a suprema alegria de admirar. Êste pródigo de emoções jamais teve a mesquinhez de negar o testemunho da sua admiração aos escritores e artistas, de que estava separado pelos ideiais. Entendia-se om êles em uma inefável zona de sensibilidade estética."

Graça Aranha, In Memoriam, Ed. de A Ordem.

Jackson, um coração de ouro  

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"A inteligência, aperfeiçoou-a sempre com esmerado carinho no conhecimento do dogma, da moral, da filosofia, da história do cristianismos. Poucos leigos possuíram entre nós uma cultura religiosa tão variada e profunda. Poucas consciências apuraram com tanta delicadeza o senso da ortodoxia. A vontade, num esforço continuado de disciplina interior, procurou sempre elevá-la ao nível da inteligência. Era um espetáculo moral digno de admiração e respeito ver a energia com que aquêle caráter nobre dominava as rebeldias naturais de um temperamento ardente e belicoso. A razão acabava sempre triunfando do instinto. Após a luta, restabelecia-se a paz no equilíbrio superior da alma. A atividade - e que atividade indomável - êle a consagrou tôda e sem reserva à defesa da verdade. Conveniências humanas de relações literárias, interesses materiais, ascensões políticas, tudo sacrificou ao desempenho de sua missão de paladino da causa católica. A igreja teve nêle sempre um leal e fiel servidor. No renhir de tantas lutas em que se viu empenhado e sob as aparências enganadoras de uma rudeza agreste, Jackson conservou sempre um coração de ouro. Conhecia e praticava naturalmente tôdas as delicadezas da amizade, tôdas as dedicações, todos os extremos das afeições vivas, sinceras, profundas. O que nêle parecia braveza era reação espontânea de um caráter superior e fogoso ante as mesquinharias humanas que deprimiam a realidade abaixo do ideal. Era por esta afeição meiga que êle cativava-os para fazer-lhes bem. Quantos jovens não devem ao impulso de sua mão firme e deliada, o surto ascensional que os elevou às eminências da fé!" (Pe. Leonel Franca - Alocuções e Artigos)

FIGUEIREDO, Jackson de. Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: AGIR, 1958.

A intolerância de Jackson de Figueiredo  

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"A intolerância não é estupidez ou fúria cega. Não é mesmo digno de ser intolerante quem não sabe por que deve sê-lo, quem não sabe por que o é. Intolerância é amor da verdade, e tanto da Suprema Verdade, como de qualquer verdade. É a face exterior da convicção, que por sua vez é a face interior da verdade, que, se não depende de nós para ser, só o é para nós quando a procuramos, a amamos, e sabemo-la defender." (Jackson de Figueiredo. p. 60)


FIGUEIREDO, Jackson de. Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: AGIR, 1958.