Chesterton e o seu livro sobre S. Francisco de Assis  

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Por Olívio Montenegro, Recife, 1930 
Publicado na revista A Ordem de 1955 

Fixar fortemente as realidades dignas de serem compreendidas, é faculdade em Chesterton de mais relevo. E esta faculdade é uma das raras, por isso mesmo que é uma das mais simples, das que sofrem menos o contato da imaginação e o contato das ideias puras. Mas muita gente que admira Chesterton, eu noto que admira dentro desse ar meio divertido, meio cético, que em geral tomam as pessoas grandes quando estão diante de crianças de espírito. E em que acham muita graça, mas que não julgam tomá-las a sério. Porque Chesterton ainda é um puro paradoxal para muita gente. Um diletante. 

Entretanto um escritor seríssimo. O menos paradoxal dos escritores. Destes que repelem por instinto tudo o que não cheira à realidade e à vida. Tudo o que é convenção e artifício entre os homens. O único paradoxo que à conta de Chesterton eu descubro é ver quanto ele é um autor pouco popular justamente pela única qualidade que o devia fazer o mais lido dos autores – o senso comum. E o seu difere muito do bom senso. O bom senso como um saber ver praticamente, com oportunidade, com oportunidade e razão. 

E o senso comum como um saber ver realmente, com veracidade e intuição. Mas é que, em verdade, o senso comum não populariza ninguém por isso mesmo que ele é o mais estranho do que parece à nossa vida ordinária. E outra coisa não nos insinua Chesterton em seu livro sobre S. Francisco de Assis, quando diz que a vida ordinária é mais cheia de imaginação do que a vida contemplativa. Mais artificial e menos pura. 

A cada passo a imaginação está a substituir e a obscurecer no homem comum os melhores trechos da vida. Poderíamos dizer: os mais arquitetônicos, os de contorno mais plásticos e incisivo. Daí a impressão sem unidade e sem sentido que a vida deixa a muita gente. As suas largas sombras de mistério. Este constante e desesperado esforço na ponta dos pés para ver através de obstáculos que tampam a vista. 

É preciso uma candura quase como a das crianças para ver com simplicidade, e justo. Agora quando a essa candura da primeira idade vem se juntar o senso crítico do homem feito, então apanhar-se todo o sentido de realidade que tem a obra de um escritor como Chesterton. Sentido de realidade e não paradoxo. E compreende-se que sejam os contos de fada os que mais interessem e o deleitem e o convençam. “they seem to me to be the entirely reasonable thing. They are not fantasies: compared with them other things are phantastic. Fairyland is nothing, but the sunny country of common sense”. É uma citação do seu livro de polêmica “Orthodoxy”. Ao mesmo tempo livro de forte exegese, de aguda, extraordinária interpretação religiosa. E que um sopro de vida introspectiva acende, numa página e noutra, um interesse dramático. Aliás , uma vez bem fixado, não há escritor que dê mais ao vivo o sentimento do pitoresco do que Chesterton. Um pitoresco que Gilberto Freyre me definiu uma vez a “preto e branco”. Deixo aos íntimos de leituras de Chesterton que avaliem o fino e forte dessa definição. 

Mas foi para falar do livro sobre S. Francisco de Assis que comecei a escrever sobre Chesterton. Desta biografia sobre S. Francisco de Assis, e que não tem nenhum sinal de parentesco com outros estudos de biografia como eles são feitos todos os dias. Uma biografia que não é simplesmente a vida exterior de um santo! O seu retrato. E em geral as biografias são unicamente um retrato. Uma imagem que ensombra, empalidece, dissipa todas as outras imagens da vida. Por isto o ar de fantástico, inverossímel de quase todas essas biografias. Não nos dão o invisível, e o que se agita de todos os lados em torno de uma vida. É uma vida como a dos teatros que elas nos dão; artificialmente cerrada entre os decoros da cena. 

O trabalho de Chesterton constitui porém quase que uma inovação nesta matéria. Ele disse que para descrever um homem era preciso muitas vezes descrever um mundo. E não foi que para nos dar a vida de S. Francisco, ele nos retratou quase toda a idade média, a idade média desde o período do Troubadours, desde o IX século até as cruzadas? Deu-nos toda época heróica da idade média. E na história da vida de S. Francisco de Assis, este estudo da idade média, não entra como uma decoração, como um fundo de quadro, mas como um elemento de vida, como uma ambiente, o único ambiente em que se podia refletir a alma deste santo. Este santo de que tínhamos muito retratos, mas não o retrato de sua vida interior. Tinhamos a sua fisionomia, mas não tínhamos a sua alma. Tínhamos seu corpo macerado e nu, o céu cilício e a sua barba afilada, tínhamos o seu ascetismo implacável, a miséria enfim, do seu corpo. Da robustez e da saúde da sua alma tínhamos muito pouco, ou quase nada. Do que havia de saúde e de fortemente jovial, e sonoramente alegre, e poeticamente heróico; do que havia de claro e ardente na alma deste santo ninguém nos deu mais ao vivo do que Gilbert K. Chesterton. 

Nas biografias de S. Francisco de Assis, como nas de todos os santos, é comum passar-se por cima do homem para se chegar ao santo. Chesterton porém nos dá esta novidade encantadora: de chagar ao santo muito naturalmente pelo homem. É uma biografia que é ao mesmo tempo uma lição cristã. Que é ao mesmo tempo uma aplicação da doutrina do Evangelho. O homem à semelhança de Deus. E mais – ele não diminui o meio para servir o homem. Chesterton coloca S. Franscisco no seu verdadeiro meio, aliás o único quadro da vida em que a individualidade do grande santo podia chegar à sua maior plenitude de força e de beleza moral. A sua visão psicológica do homem tem a mesma penetração que a sua visão histórica do meio. A mesma força e a mesma precisão. S. Francisco ganha como significação de símbolo. O símbolo da idade média. Esta idade média de que Chesterton nos oferece a mais viva e a mais duradoura imagem que é possível se oferecer de uma época; época que também sofreu e continua a sofrer o martírio e a crucificação por que passaram os seus santos. O martírio e a crucificação dos que vão revistar com olho insensível e profano. Com olho e faro de abutre. A idade média marcou uma das idades mais românticas da história (romântica, não sentimental), mas foi também uma das mais práticas. Este senso de prático da idade média descobriu-o o olhar reto e simples de Chesterton, um senso prático que não tem nenhuma relação com o senso egoísta e desumano da vida moderna. Um senso prático que era ao mesmo tempo um senso de fraternidade e de comunhão humana. 

E de que as corporações, corporações de toda a espécie e ligadas a toda a atividade são o seu tipo mais aperfeiçoado. Senso prático que não repelia mas colaborava com o sentido heróico da vida. O seu sentido espiritual. Esta fazer da vida medieval o homem moderno não a descobre facilmente. Ou melhor, não a apanha do primeiro golpe. Esta comovida agitação diante da vida. O poder de estar na vida como numa aventura. 

A vida para o homem do nosso século é apenas uma luta (struggle for life). Na idade média (séculos XII e XIII) a vida porém foi sempre alguma coisa mais de que uma luta; do que a luta pela luta, a força pela força, do espírito moderno. Foi antes uma conquista, que é o drama na luta. E não é uma relação que sente mais voluptosamente, e mais fundo: uma relação de amor, poderíamos dizer. E é este traço da idade média que não poderia passar fora do golpe de raio da visão de Chesterton – este sentimento poético da vida que nos séculos XII e XIII, se conserva com uma força inesgotável através de toda a luz branca do seu misticismo. 

Aliás, toda a inquietação espiritual de que se ressentem o pensamento e a ação do homem medieval, nesse amor à vida é onde tem a sua principal raiz. No sempre esperto e aguçado desejo de fraternização e intimidade com os seres e as coisas do Universo. 

A arte dos “troubadours” tão cheia de febre, e tão cheia de luz, tão intensa e tão transparente ao mesmo tempo, é a imagem mais concentrada desse sentimento amorosos do homem em face das coisas da terra, do seu interesse a um tempo positivo e lírico, sensual e cristão por todas as formas de Natureza. S. Francisco de Assis tinha como ninguém uma alma de “troubadour”. Em S. Francisco de Assis tinha como nenhum homem este impulso cordial pela vida da Natureza e seu colorido, a sua força, o imperscrutável mistério das suas criações, assumiu um relevo mais dramático. A grande poesia de S. Francisco não está tanto nos seus versos, nos seus cantos ao Sol, está na sua vida mesmo, na sua ação, e nas suas obras. A harmonia, a grande harmonia que havia de dominar a sensibilidade desse santo, não foi naturalmente a harmonia da idéia, e antes a harmonia do Universo. A vida para ele tinha um ritmo maior do que todos os outros ritmos que podem nascer do sentimento ou da idéia. Para S. Francisco de Assis a vida na terra nunca lhe soube a aprovação. Nada de provação a vida para o grande asceta, o grande esfaimado de jejuns; esse voluptuoso de penitências e de martírio. Apenas uma lição. Apenas uma lição de profundas e íntimas experiências, é o que ela foi cá para o bom S. Francisco de Assis. Ou mais simplesmente – um campo de constantes e venturosas descobertas. 

Não pode nada haver que no homem concentre mais sensação de vida, e interiormente nos intensifique e desenvolva mais do que uma descoberta. É como um novo sentido que nascesse em nós. Pois S. Francisco, e é Chesterton ele mesmo quem no-lo revela, era justamente este homem para quem não havia o mistério puro. O mistério sumia-se diante dos olhos do seu espírito como a treva com a luz. 

Não se cita na história exemplo de uma visão arquitetural da vida, mais permanente, nem mais lúcida e instantânea. 

Uma visão a ferir sempre os efeitos gerais que não são os efeitos em massa de uma floresta, mas são os efeitos em articulação, em corpo, de um monumento, de uma catedral. Porque é uma diferença que vale a pena marcar, a diferença entre uma visão em globo, e uma visão integral, das coisas. S. Franscisco possuía justamente essa visão integral, que não sacrifica a parte ao todo, mas que os distingue com uma acuidade infalível. 

O que mais espanta em S. Francisco de Assis, o que mais espanta no retrato a carvão que Chesterton nos dá desse santo, é a inalterável unidade que se percebe entre a sua vida interior e a sua vida exterior. É a esquisita fidelidade do seu gesto ao seu sentimento. A sinceridade absurda das suas atitudes, ou melhor a coerência, a irreprimível lógica da sua ação. O seu amor às vezes, aos bichos, aos elementos como o Sol e Água, tudo irmãos, porque tudo emanado do mesmo Poder e da mesma Vontade, tem uma cor de inteligência sobrenatural. Essa profusão de humanitarismo na vida de S. Francisco de Assis, talvez dentro do prejuízo do espírito moderno viesse a ter uma expansão medíocre. Na idade média, porém, ela produziu a Ordem dos Menores, essa Ordem que, diz Chesterton, “foi da natureza de um tremor de terra ou de uma irrupção vulcânica: explosão que lançou fora com uma energia dinâmica as forças acumuladas desde dez séculos, na fortaleza ou no arsenal do mosteiro, e dispersou todas as suas riquezas em todos os pontos da terra”. 

De S. Francisco de Assis poderia se dizer (se grau houvesse para santidade) que foi o maior santo da idade média, pelo menos num sentido: de que foi quem melhor a exprimiu nos seus ideias de justiça, e na sua ânsia de Deus. 

Assim é que certas ordens da idade média parecem uma criação pura de S. Francisco de Assis, como essa ordem dos Cavaleiros, por exemplo. Essa ordem de homens devotados exclusivamente ao serviço dos fracos e dos humildes, e dos pobres e dos aleijados é todo um poema em ação, em vida. É a maior confluência que se pode imaginar da poesia, na força. A ordem dos cavaleiros a serviço de todos os oprimidos e inválidos, é uma como antecipação em ponto inferior da ordem dos Menores. Há um tão forte de família entre as duas ordens, que ninguém diria nascidas tão distantes uma da outra. O que a ordem dos Cavaleiros procurou fazer pela vida terrestre dos pobres. É lírico tudo isso, mas grande como a vida mesma.

O progresso e Chesterton - Gustavo Corção  

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Por Gustavo Corção,
Publicado na Revista A Ordem, janeiro de 1940.

Léon Bloy fez na "Exegese des lieux communs" a perseguição impiedosa dessas expressões amoedadas que andam por aí, nas ruas e nas cátedras, como restos ensebados duma sabedoria que a preguiça e a conveniência prostituíram. Bloy não escolhia muito, nem perdia muito tempo em olhar mais de perto os frangalhos que impetuosamente desbaratava.

Numa linguagem viva e desesperada, sem medida, sem precauções, ele fazia um chicote estalar em cada frase...

Chesterton não foi menos inimigo do lugar comum, nem menos tenaz, mas especializou-se numa certa espécie, naqueles que contém verdades de pernas para o ar. 
Passou a vida invertendo os quadros que o jornalismo moderno pendura com o Céu para baixo. Fez isso escrupulosamente e corretamente, com a satisfação que um bom inglês deve ter em corrigir as desordens de seu interior.
Foi um D. Quixote gentleman e conseguiu sempre inscrever uma ardorosa combatividade no recato britânico, no horror ao impróprio; mas foi sempre, fundamentalmente, um "redresseur des torts".
Por isso, a cada instante, o leitor comum, habituado às sentenças de Carrel e ao jornalismo moderno, estaca desconfiado na Ortodoxia ou em A Esfera e a Cruz.
Mas um sorriso vagamente divertido resolve a dificuldade daquele leitor que acha afinal uma saída, ainda e sempre por um lugar comum, decretando que aquilo tudo que o Chesterton diz é paradoxo.
Já ouvi essa apreciação em meia dúzia de tentativas que fiz de tornar lido um daqueles livros por diversos amigos, engenheiros, negociantes, dentistas, todos homens de boas roupas e ótimas familias. Dizem que é paradoxo, assim como que diz que certo indivíduo cego de nascença, com escamas nos olhos, ficou vendo de repente, por sugestão.
Dizendo assim uma palavra ávida de definição, sedenta de exegese, parece que o assunto está definitivamente encerrado e que é melhor falar noutra coisa.
Paradoxo tem dois sentidos, muito diferentes.
Pode ser o sinal de crucificação, o emblema da dialética divina que criou as coisas atravessadas pelas coisas, pode ser a vida da inteligência, pode ser todo o cristianismo. Mas para aqueles leitores o paradoxo é um truc de salão, uma escamoteação engraçada, um tirar ovos do nariz, e seguramente pensam que Chesterton escreveu aOrtodoxia "for fun".
Para responder a essa opinião é preciso buscar inspiração no próprio Chesterton e dizer que, naquele sentido, não há um só paradoxo em todos os seus livros, e que o riso da ortodoxia é extremamente sério.
Por isso tudo e principalmente pensando nos leitores católicos, tive a idéia de tentar aqui uma modesta propaganda.
Recomendo o Chesterton como se recomenda o quinino, principalmente para aqueles que por dever de ofício freqüentam os mangues da inteligência, as paragens encharcadas de lugares comuns, as baixadas do pensamento: para aqueles que possam confundir catolicismo com sisudez e cultura com academias.
Quando por exemplo, em roda de intelectuais, um senhor bem vestido dissesse pausadamente que a Igreja tem feito resistência ao Progresso, algum de nós, católico, antigo aluno distinto de apologética, seria capaz de aceitar uma educada controvérsia, tentando improvisar uma advocacia da Igreja, toda ela miudamente construída com fatos e interpretações.
Iria discutir o caso de Galileu, citar Copernico, lembrar que também a revolução se opôs a Lavoisier, e que Einstein foi desterrado pela cruz gamada. Ficaria tudo cristalizado num ambiente acadêmico, tudo impregnado da mais educada idiotia. Seria uma marcação de pontos como no bridge, a saber quem tinha encarcerado mais astrônomos ou queimado mais químicos.
Ora, quem tivesse o Chesterton na mão, como um vidro de sais, poderia simplesmente responder que, pensando bem, a Igreja é a única coisa que realmente tem progredido. A maior parte dos católicos presentes a tal reunião, ficaria assustada, a tal ponto nós os católicos nos educamos no hábito de defender, de justificar, de desculpar a Igreja, e a tal ponto receamos espantar o adversário com palavras cristãs demais.
Parece que numa discussão inteligente é preciso calar o amor ao Pai para não ficar como testemunha suspeita, e por isso às vezes se nos afigura, a nós católicos, preferível adotar um tom mais mundano do que cristão. Já ouvi turbulentas gritarias cosmogônicas em que cada um tem sua idéia para as origens e para as leis, e numa dessas gritarias lembro-me que um transbordante católico, no auge do entusiasmo, tão fácil lhe pareceu atacar o darwinismo que chegou a gritar: — Para isso nem preciso de Deus...
Esses católicos costumam praticar a contabilidade da Verdade.
Julgam meio caminho andado quando os seus oponentes acabam concordando que são a favor de Jesus. Julgam que a Igreja cresce subitamente e o Cristo ressuscita quando se consegue apurar uma safadeza de Rousseau; julgam que é um verdadeiro apostolado contar que Diderot ensinava o pelo-sinal à filha como se toda a Verdade, todo o Cristo, estivesse à espera de Diderot.
Preferem em presença dos adversários e dos indiferentes não cheirar demais a incenso, e, sempre que possível, se colocar no próprio plano fazendo um miúdo inventário de fatos e anedotas a favor dos Papas. Têm satisfação em citar Psichiari, não por ele mesmo, mas especificamente porque Psichiari responde a Renan e assim, numa espécie de intriga em família, desfaz a má impressão da vida desregrada do avô.
Por isso tudo Chesterton aparece um pouco bruscamente perturbando a diplomacia filandrosa que julgam necessária para salvar os restos da Igreja. É como se na mais solene sessão de Júri alguém se lembrasse de se perguntar ao réu se o Juiz era culpado.
Depois do susto vem o alívio, o sorriso e a classificação de paradoxo. E o julgamento do Cristo pelos jornalistas continua para a delícia das galerias...
Será preciso ler algumas páginas da Ortodoxia para mostrar que aquele aparente paradoxo não foi feito com propósito. O autor vinha perseguindo a idéia de progresso, vinha cercando o conceito, invertendo aqui e ali os lugares comuns que são os monumentos da cultura moderna, quando subitamente a apologia da Igreja apareceu, sozinha, explodiu por assim dizer, sem ser preparada, como chave de ouro de soneto.
Prefiro citar aqui algumas passagens mais características:
O Progresso deveria significar que estamos sempre querendo mudar o mundo para adaptar a uma visão definida. Realmente, hoje, significa que estamos mudando constantemente de visão. Deveria significar que conseguimos devagar, mas de modo seguro, a justiça e a piedade entre os homens: significa na verdade que estamos prontos a duvidar se a justiça e a piedade são desejáveis; uma página louca de um sofista prussiano qualquer faz os homens duvidarem.
O Progresso significaria talvez que estamos sempre em marcha para a nova Jerusalém. Significa que é a nova Jerusalém que está em marcha longe de nós. Não modificamos o real para o adaptar ao Ideal, modificamos o Ideal: é mais fácil.
Exemplos vulgares são sempre mais simples. Suponhamos que um homem queira um certo mundo, digamos um mundo azul. Não teria nenhuma razão de se queixar da lentidão ou rapidez da tarefa; poderia se fatigar nessa transformação, poderia se esgotar até que tudo ficasse azul; passaria por aventuras heróicas, nos últimos retoques de azul sobre um tigre. Haveria sonhos feericos de um lugar azul... Mas se ele trabalhasse com afinco, esse reformador cheio de altas idéias deixaria, segundo seu ponto de vista, um mundo melhor e mais azul do que tinha encontrado.
Se cada dia ele pintasse uma folha de erva, avançaria lentamente. Mas se cada dia modificasse sua cor favorita, então não adiantaria absolutamente. Se, depois de ter lido um novo filósofo, ele se pusesse a pintar tudo de amarelo, então o seu trabalho estaria perdido: nada teria a mostrar senão aqui e ali algum tigre azul, lembrança desagradável de sua primitiva maneira [...]
[...] senti mais uma vez que uma coisa estava presente na discussão: como um homem ouve um sino de Igreja dominar o tumulto da rua. Alguma coisa me dizia: — Meu ideal está fixado, ele foi fixado antes da fundação do mundo. Vocês todos podem mudar o lugar para onde querem ir, mas não aquele de onde vieram. Para o ortodoxo deve existir sempre um motivo para revolução, porque no coração dos homens Deus está sempre sob os pés de Satã. No mundo do alto o Inferno se revoltou contra o céu, mas neste mundo o céu se revolta contra o inferno. Para o ortodoxo pode sempre haver uma revolução que é uma restauração. A cada instante podemos fazer para a perfeição um progresso tal que nenhum homem viu, desde Adão."
É muito fácil falar em progresso quando se pensa unicamente, com uma concentração demente, num modelo de escarradeira, fazendo uma momentânea abstração de todo o Universo e toda a história. Vê-se nitidamente um progresso de escarradeiras, mas quando se torna a admitir a presença de tudo, do universo e dos homens, é preciso convir que a escarradeira é insuficiente, é forçoso convir também que, falando em Progresso, subentende-se um mundo ora mais azul ora mais amarelo. É fácil gritar que é paradoxo, mas realmente só pode progredir o que permanece, o que é fiel a si mesmo, o que não se destrói. Só vale a pena usar esse termo, pensar nele, como um equivalente de crescer. E somente em cima de um chão que permanece, que fica, que é desde o princípio et semper et nunc, poder realmente crescer a árvore da Igreja.
E cresce. Cresce em torno d'O que não muda, d'O que era antes de Abraão ser. Cresce na vertical da liturgia e na fronde do apostolado. Está em todos os tempos. Preocupa-se com Marx ou Nietzche nas cartas paternais de Pio XI que previnem os povos contra os excessos de azul ou de amarelo, e guarda na Missa o grito de um soldado romano. Vem de sempre. Já era desde o princípio. Traz todos os profetas e todos os salmos; surge de repente na Incarnação emergindo de um oceano de prefigurações e promessas; absorve tudo na passagem: a palavra do soldado, uma impaciência de Marta. Dá flores prodigiosas de aroma e suco para um vinho que há de correr por todos os séculos. É a árvore do pão e do vinho; o tronco se simplifica; os galhos se simplificam; um se atravessa no outro e o pão e o vinho se prendem na cruz. E a Igreja cresce conosco, apesar de nós, espalha em torno, quando floresce, as auréolas dos eleitos, sofre todos os golpes, todos os doutores, todos os Papas. E cresce, e progride, porque é sempre a mesma.